quarta-feira, 9 de junho de 2010

SECRETÁRIA DE EDUCAÇÃO BÁSICA DO MEC FALA SOBRE A ESCOLA CONTEMPORÂNEA, O PLANO DO GOVERNO E OS DESAFIOS DO ENSINO MÉDIO, ENTRE OUTROS TEMAS



Na definição de Maria do Pilar Lacerda, secretária de Educação Básica do Ministério da Educação (SEB/MEC), tratar a informação de forma crítica é a grande missão da escola nos dias de hoje. Diferentemente do que ocorria nos anos 60 e 70, quando a própria instituição escolar era a fonte dessa informação para os jovens, hoje ela tem de ajudá-los a refletir sobre a origem, a forma e os significados de informações que transbordam de variados meios e fontes, inicialmente indistintos em termos de valor.
Professora de história da Educação Básica, ex-secretária de Educação de Belo Horizonte e ex-presidente da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime), Maria do Pilar defende o Plano de Desenvolvimento da Educação, lançado quando assumiu o cargo na SEB, há três anos, por vê-lo como flexível e articulador de todos os níveis de ensino. E prega uma prática docente que se construa a partir do conhecimento da realidade do aluno. Leia, a seguir, a entrevista concedida ao editor .

Quando a senhora assumiu, o então recém-lançado Plano de Desenvolvimento de Educação tinha grande espaço nos meios de comunicação, espaço este que não se manteve. O PDE ficou muito identificado com os resultados do Ideb?

O PDE tem uma grande vitrine quando fala do Ideb. Mas as ações que vieram a partir desse diagnóstico são aquelas que direcionam e organizam nosso trabalho. A visibilidade dele se dá através dessas ações. ProInfância, Plano Nacional de Formação de Professores, Caminho da Escola são ações que vêm a partir da identificação dos pontos fracos, das fragilidades. E o PDE não é um plano engessado. Ele nos possibilita repensar, refazer, pensar coisas novas. Pode ser avaliado e melhorado. É o plano executivo do Plano Nacional de Educação (PNE), que traçou metas, estabeleceu objetivos, mas esqueceu o principal, que é dizer como fazer para atingi-las. O PDE é a possibilidade de alcançá-las, ou de tentar alcançá-las por meio de políticas públicas concretas e referenciadas. O PDE organizou nosso trabalho, ao mesmo tempo em que trouxe flexibilidade e possibilidade de melhorar, de transformar, de avaliar.

Qual rumo foi mudado em função da experiência e do monitoramento nesses três anos?

Vou falar do ensino médio. Tínhamos um diagnóstico, através dos dados de evasão, aprovação, conclusão, de que o ensino médio talvez fosse o elo mais fraco da educação. E estratégico, porque é a ligação entre Educação Básica e superior. Essa identificação tomou outro rumo quando começamos a fazer a discussão do novo Enem. Se essa discussão tivesse ficado restrita apenas no acesso ao ensino superior, nos teríamos limitado a pensar em um novo vestibular. Quando o ministro criou o Comitê Gestor do Novo Enem, deu um foco muito grande à Educação Básica e ao ensino médio, fez dele a possibilidade de o ensino médio flexibilizar o seu currículo. Enquanto o vestibular existir na forma atual - conteudista, cobrando um nível de memorização muito grande - o ensino médio não conseguirá mudar. A partir dessa discussão, começamos a pensar o Ensino Médio Inovador. Isso ocorreu no final de 2008, início de 2009, quase dois anos depois de o PDE ser lançado. Foi o desenho do Plano que possibilitou isso.

O MEC tem defendido a ideia de interdisciplinaridade.

Como a senhora vislumbra isso do ponto de vista da organização curricular e da formação docente?

Há quem defenda uma divisão por áreas e a formação de generalistas para essas áreas...Não queremos acabar com as disciplinas, isso tem de ficar claro. Não temos ainda um acúmulo suficiente tanto na formação de professores como na discussão curricular para chegar a esse ponto. Por outro lado, é muito difícil que o jovem de 15 a 17 anos tenha um aprofundamento da aprendizagem com 12, 13 ou 14 disciplinas no currículo. A saída, além da interdisciplinaridade, é a flexibilização do currículo. Há quatro pontos do Ensino Médio Inovador que são estruturantes do projeto. O primeiro é o foco na leitura, o que significa ter políticas concretas para que o aluno tenha ao menos 20% da sua carga horária dedicada a atividades de leitura. Logo, a escola tem de ter uma boa biblioteca, um acervo bom de filmes, levar o jovem a teatros, exposições - pois estamos falando de todas as leituras. Isso tem implicação no currículo, porque se passa a pensar as aulas de matemática, de história, de física com esse foco, não é uma atividade apenas para o professor de português. Outro ponto é que 20% da carga horária, ou 200 horas/ano, deve ser composta por disciplinas eletivas, atividades que ele define a partir do que a escola ofereça. Em algumas escolas, por exemplo, o professor de história vai trabalhar também com teatro, assim a escola não precisa contratar muitos outros professores. Isso está começando nas escolas agora, desde fevereiro, nos 18 estados e nas 340 escolas que aderiram neste ano.

E os outros dois pontos?

A carga horária passa de 800 para mil horas anuais. Isso significa passar de quatro para cinco horas por dia. Ainda é pouco, mas não queríamos fazer um modelo que inviabilizasse isso nas escolas. Se fossem sete horas por dia, por exemplo, significaria que o outro turno não poderia ter aula. Se o aluno ficasse das 7h às 14h, não haveria turno da tarde. Então, a carga horária passa a ser de 3 mil horas no ensino médio, com mil horas por ano. O quarto ponto é a dedicação exclusiva do professor, com 40 horas semanais, numa única escola. Esse é o ponto mais difícil de ser atingido por todos os sistemas e escolas. Mas colocamos como um fator norteador. Por quê? Porque o professor tem de trabalhar com um sistema de tutoria para os alunos. Essa é uma grande diferença. Você não precisa ser tutor de 400 alunos, mas pode ser tutor de 20 alunos. Ele tem de ter um momento para conversar com o aluno, fazer o acompanhamento de suas dificuldades, da sua relação com os outros alunos, dos seus dilemas de adolescente - e nós sabemos como eles foram duros. Aí a escola começa a assumir a juventude, a se tornar a escola da juventude. Pensamos na chamada era da informação, que muda radicalmente a escola. A escola em que comecei a dar aulas, nos anos 70, era a escola para passar a informação; a escola em que estudei nos anos 60 era aquela que nos dava grande parte da informação que tínhamos.

Hoje, a informação é conseguida em diferentes lugares, e a escola passa a ser o lugar para tratar a informação, o que significa reflexão, distinguir o falso e o verdadeiro, a origem da informação...

Também não deve diferenciar informação e conhecimento?

Informação leva ao conhecimento. A informação do jeito que os meninos têm hoje, na internet, é superficial. Para se transformar em conhecimento, precisa ser tratada, e aí não é mais passar uma lista de nomes de capitães donatários no quadro. Isso se consegue no Google. É preciso cada vez mais entender como se consegue informação pela internet, e isso passa pela formação docente, o que também terá impacto. Estamos fazendo o debate com as universidades sobre o desenho pedagógico das licenciaturas, pois se elas continuarem puramente disciplinares, altamente conteudistas, não vão formar professores que deem conta de um currículo flexível, interdisciplinar, que trabalhe com outras fontes e formas de leitura. No Plano Nacional de Formação de Professores, um dos efeitos desse plano é fazer com que a universidade discuta e converse sobre a Educação Básica, para que a licenciatura comece a refletir essa nova escola.

Será que não está havendo uma excessiva "demonização" do processo de memorização, visto que ele é uma das partes do processo cognitivo?

Não existe conhecimento sem utilizar a memória. Isso é uma coisa. Outra é a "decoreba", naquele sentido de decorar a tabela periódica sem saber o que ela significa. Quantos e quantos jovens não gastaram horas decorando símbolos e informações sem saber para quê, como e por quê? É fundamental utilizar a memória, memorizar - poesias, datas, linha do tempo. O que não podemos é limitar a avaliação, a prova, a cobrança, a isso. Decorar uma poesia é maravilhoso, mas não porque se pode ser sorteado pela professora para recitar Castro Alves, sem saber quem foi, onde nasceu, em que período histórico escreveu. Essa é a guinada. A memória é um dos maiores instrumentos que temos para o conhecimento e o aprofundamento da aprendizagem. Mas fazer decorar sem sentido não é garantir a aprendizagem. É importante que a memorização não seja "demonizada", mas a memorização apenas para fazer a prova não deve ser o foco da escola.

O despreparo com que muitos alunos estão vindo do ensino fundamental também não está atrapalhando muito o ensino médio?

Sem dúvida. A defasagem idade-série afeta muitos alunos em relação ao processo da Educação Básica. Começar o ensino médio com 17 anos já é uma grande defasagem. Ou com os 15 anos regulamentares, mas com baixa capacidade de leitura, de interpretação, um conhecimento matemático superficial. Garantir o ciclo da alfabetização de forma consistente aos 6-7-8 anos de idade vai causar impacto positivo no percurso escolar desses alunos. As pesquisas mostram, também, que os alunos que têm acesso à pré-escola terão percurso escolar melhor. A qualificação e a melhora no ensino fundamental têm um impacto importante no desempenho do ensino médio, assim como a garantia da educação infantil. Por isso, temos pensado de uma maneira articulada, sistêmica, da creche à pós-graduação.

Até a metade deste ano, o Conselho Nacional da Educação deve aprovar novas diretrizes curriculares para o ensino fundamental. O que devemos esperar como novidades?

A principal é a discussão do ciclo da alfabetização e da nova organização da escola para o ensino fundamental de nove anos. A segunda é a discussão da organização da escola em relação às disciplinas. Não queremos que a criança aos 6 anos já comece a ter essa compartimentação disciplinar que se impõe à escola brasileira e que não é comum no resto do mundo. É preciso pensar que as crianças não aprendem abrindo e fechando portinhas, que no cérebro delas não há uma gavetinha para história, outra para geo­grafia. Queremos aprofundar muito o debate sobre a organização do conhecimento dentro da escola. E o terceiro ponto fundamental é o reconhecimento de que os alunos dos 6 aos 14 anos têm diferenças grandes, então é preciso saber o que é organizar a escola para a infância, para a pré-adolescência e para a adolescência. Isso significa uma mudança de foco.

A saber...

Muitos perguntam qual a diferença da escola seriada para a de ciclos, qual a diferença e o problema do conteudismo. Não existe conhecimento sem conteúdo, mas a escola que se organiza a partir do conteúdo desconhece o aluno. A grande diferença é a escola que organiza os seus tempos, os seus professores a partir do aluno, e a escola que se organiza a partir do conteúdo. No meu tempo de professora, chegávamos à escola em fevereiro e reuníamos os professores de história da 5ª série. Perguntava-se o que daríamos aos alunos naquele ano. No 1º bimestre, Brasil Colônia; no 2º, o Ciclo do Açúcar... e assim por diante. Não sabíamos quem eram os alunos, o que já sabiam, de onde vinham, quais eram suas deficiências. Muitas vezes, recebíamos alunos que mal liam, e tratávamos como se não fosse problema nosso. Qual é a política, qual é o projeto pedagógico para garantir que eles saibam? Essa é a grande mudança que buscamos, que a escola não coloque a culpa da não aprendizagem na criança, que assuma isso como um desafio profissional, que identifique as dificuldades, conheça a trajetória do aluno e organize seu currículo a partir deste conhecimento. Isso é uma guinada na organização do trabalho do professor.

Como isso se instrumentaliza?

Quando a escola se ancora nessas explicações, quando responsabiliza o aluno e sua realidade, deixa de se aprofundar no seu grande desafio profissional. Não é uma questão de culpa. Qual dificuldade tem esse aluno e qual projeto pedagógico será elaborado para que ele supere isso? Tem de ter recuperação, aula de reforço, tem de encaminhar ao posto de saúde porque às vezes ele tem oito graus de miopia, tem de saber se a mãe e o pai deixam faltar na escola uma semana e não tomam providências. Essas são obrigações dos educadores, da escola. A escola não precisa ter médico e garantir os óculos, mas tem de encaminhar para um posto de saúde para que a criança seja atendida; tem de se articular com o Conselho Tutelar para que ele investigue por que a criança faltou um mês e ficou defasada. A frequência é fundamental, mas não acontece por si. Tanto o projeto da escola garante a frequência, como a articulação com outros setores de políticas públicas garante que a criança seja acompanhada e tenha o seu direito atendido. Então isso se instrumentaliza lembrando que professores e diretores também são agentes públicos, e têm esse dever profissional. É essa postura que faz a diferença e que identificamos na pesquisa do Unicef nas escolas que, em condições muito fragilizadas socialmente, conseguem fazer um bom trabalho, pois têm um projeto pedagógico que é de verdade. Têm o projeto de gaveta e o de verdade, elaborado por seus profissionais e que efetivamente orienta as suas ações. E isso faz uma grande diferença.

Quanto à formação docente: o MEC fez parceria com os estados e entrou firmemente na gestão compartilhada desse processo. Mas o perfil desses professores ficou a critério dos estados.O MEC não pensa em propor um perfil de formação?

Aí entra a nossa grande dificuldade, que é o nosso regime federativo e a autonomia de estados e municípios. O que fizemos para que esse trabalho entre União, estados e municípios tenha mais coerência? Cada estado tem um fórum estratégico de formação, de que participam o secretário estadual, o representante dos secretários municipais, o representante dos trabalhadores em educação e um representante de cada instituição pública de ensino superior que aderiu ao Plano Nacional de Formação. Identificamos na formação inicial qual é o perfil do professor que pode participar desse primeiro movimento. Eram 300 mil vagas até 2011. São três perfis [de contemplados]: aqueles que não têm formação superior; aqueles que já têm licenciatura, mas atuam em outra área; e aqueles que têm curso superior, mas que não têm licenciatura e devem fazer uma complementação pedagógica. No Plano Nacional de Formação, a formação inicial é garantida, numa primeira etapa, para esses três perfis. Na formação continuada, pedimos aos gestores que identifiquem os maiores desafios da educação de seu município ou estado - se é alfabetização, inclusão de crianças com deficiência etc. - e a plataforma Freire faz a articulação com os cursos oferecidos nessas áreas. Agora, estamos também começando o debate com as instituições de ensino superior sobre o desenho pedagógico das licenciaturas para que elas se articulem mais com essas novas orientações.

Existe um planejamento, um cronograma para nortear esse debate?

Os fóruns já funcionam desde o ano passado. Temos 13 estados em que os fóruns funcionam muito bem, cinco em que começam a engrenar agora e nove que estavam previstos para começar a funcionar em abril, ou seja, para cada estado a articulação é diferente. Mato Grosso é um exemplo de bom funcionamento, articulado, e agora vamos fomentar os centros de formação de professores estaduais. Mato Grosso, Bahia e Paraná têm centros de formação ligados às secretarias estaduais e eles começarão a trabalhar articulados conosco na formação continuada. Começamos no ano passado com a inscrição dos professores na formação inicial, a validação. Houve matrículas para o segundo semestre de 2009, com as matrículas para o segundo semestre de 2010. O cronograma é até o final de 2011. E o MEC lançou agora o edital para a Rede Nacional de Formação Continuada, em que chamamos as universidades para que elas ofereçam cursos - já temos uma rede, agora ampliamos - e para que esses cursos sejam oferecidos como fazem, por exemplo, a Universidade Federal de Pernambuco e a Universidade Federal de Minas Gerais. Ambas têm o Pró-letramento, para professores das séries iniciais. Qualquer município do Brasil pode escolher esse curso e a universidade que recebe o recurso do MEC se articula diretamente com o município para oferecer o curso.
Até o final do fevereiro deste ano, cerca de mil municípios ou não estavam fazendo o acompanhamento do PAR, ou não faziam de forma de adequada. Muitos alegavam não ter acompanhamento técnico adequado do MEC. A formação de pessoal técnico não precisa ser acelerada?Estamos nos articulando com as universidades para que elas façam o monitoramento. Já repassamos recursos, a parte de construção e reformas de escolas, de compra de mobiliário tem funcionado bem. A Renilda Peres de Lima, diretora do FNDE, está fazendo, com nossa diretoria de articulação com sistemas, o monitoramento, mas nós começamos com os 1.822 municípios de baixo Ideb e os grupos de trabalho das 172 maiores cidades do Brasil. Esse é o nosso foco inicial. Analisamos antes os prioritários e hoje devemos ter quase 5 mil planos de ações articuladas analisados, uns 400 e tantos na fila, e só 48 que não fizeram ainda o PAR.
Quais as chances de o governo atual aprovar os 10% do PIB propostos para a educação na Conae?

Aí já é um exercício de quiromancia. Digo a opinião da Secretaria de Educação Básica: quanto mais recursos tivermos, melhor para a educação. Apesar de termos triplicado o orçamento da educação de 2003 a 2010, passando de R$ 14,1 bilhões para R$ 51,7 bilhões, e estarmos chegando perto de 5% do PIB, ainda precisamos de mais recursos, pois temos uma grande dívida social. As creches, por exemplo, se tornaram efetivamente uma obrigação da educação a partir do ano 2000. Passamos de 9% para 18% de crianças de 0 a 3 anos atendidas em creches, mas ainda é pouco. E creche é o investimento mais alto da Educação Básica, pois o percentual criança-adulto tem de ser menor, a escola tem de ser menor, a infraestrutura, os equipamentos, tudo é diferenciado. É preciso um investimento alto. O governo federal já financiou 1.720 escolas infantis em parceria com os municípios. Mas precisamos fazer 1.500 por ano para atingir a meta do PNE, que é de 50% das crianças de 0 a 3 atendidas. Então, é preciso haver mais recursos. Obviamente que bem geridos, com foco, com projetos estruturadores. Mas, se for 7% do PIB, ótimo, se for 10%, maravilhoso. Nós, da educação, nunca vamos achar que a parcela de recursos do país para a educação não deve crescer, principalmente para a Educação Básica.

Fonte: Revista Escola Pública -Maio/Junho 2010

Reportagem de Rubens Barros

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